»LIMONOW«


von
Emmanuel Carrère



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«Limonov»: quando o romance não cabe na ficção

Sérgio Rodrigues

O que é um personagem? Vamos aproveitar o espírito questionador para ir mais longe: o que é um romance? O leitor não precisa formular para si mesmo essas perguntas cabeçudas enquanto atravessa «Limonov», do francês Emmanuel Carrère.

Dificilmente terá tempo para isso, aliás: o premiado livro que romanceia a biografia do escritor, aventureiro e político russo Eduard Limonov, lançado em 2011 por Carrère, um dos principais nomes da literatura francesa contemporânea, é daqueles em que as páginas parecem virar sozinhas, movidas pelo puro prazer da leitura. Mesmo assim, as perguntas ali de cima estarão à espreita por trás das palavras.

Lançado no Brasil no fim do ano passado e recebido com frieza imperdoável, «Limonov» conta a história de um personagem que dificilmente caberia numa obra ficcional, um russo alucinado que é a melhor prova o acerto daquela tirada de Mark Twain: «Por que a verdade não seria mais estranha do que a ficção? A ficção, afinal, tem que fazer sentido».

Se um bom personagem fictício deve ser redondo, segundo uma imagem (do inglês E.M. Forster) que pegou, Limonov é um meteorito cambiante e cheio de arestas. Que machucam. Famoso em seu país e praticamente desconhecido fora dele, nasceu num cafundó da URSS no tempo de Stálin e logo se pôs a enfileirar papéis meio incongruentes: poeta dissidente nos primeiros anos da era Brejnev, mendigo e homossexual (com preferência por negros) na Nova York dos anos 1970, mordomo de um milionário na mesma cidade e na mesma época, escritor maldito da moda em Paris nos 80, soldado voluntário pró-Sérvia na guerra dos Bálcãs, ídolo contracultural e líder de um partido de inclinações fascistas, o Partido Nacional-Bolchevique, na Rússia pós-soviética.

Temperamento artístico e militarismo, inteligência aguda e estupidez, sofisticação e grossura, grandeza e ignomínia, nada disso lhe é alheio. Cabe tudo ali, na montanha-russa inverossímil de uma vida cheia de aventuras que ainda não terminou: justamente hoje, 22 de fevereiro (coincidência curiosa que acabo de constatar), Limonov está completando 71 anos e segue na oposição a Vladimir Putin, entre uma temporada e outra na cadeia.

O sujeito é tresloucado até para os padrões russos e, no esquema de Twain, não faz muito sentido. Por isso mesmo — eis a grande sacada de Carrère — acaba fazendo todo o sentido como retrato das transformações que viraram seu país do avesso e de pernas para o ar nas últimas décadas. O autor, que tem antepassados russos, é claramente fascinado pelo personagem, mas ao fascínio se mistura o horror. Carrère não hesita em se deixar ver no quadro que pinta, como Velázquez em «As meninas».

O episódio em que Limonov, diante da câmera de um cinegrafista, se põe a atirar na direção de passantes nas ruas de Sarajevo, conta o autor, «me esfriou a ponto de eu abandonar este livro por mais de um ano». Outras vezes o uso da primeira pessoa cumpre a função de contrastar as ultrajantes opções políticas, estéticas e existenciais do personagem com as do próprio narrador, mais moderadas — tão moderadas que caracterizam covardia?v

Os momentos de exposição do autor nada têm da autoindulgência e da autocomiseração que assolam com frequência a chamada «autoficção». Embora tenha nas mãos um personagem com traços vilanescos, Carrère nunca se escala no papel de mocinho. É pelo menos tão cruel consigo mesmo quanto com Limonov. Talvez mais.

Como o Javier Cercas de «Soldados de Salamina» e «Anatomia de um instante», Carrère emprega um amplo leque de técnicas romanescas para refletir sobre eventos históricos, mas sem transformar a «realidade» em fetiche. Pelo contrário: os fatos são problemas, construções precárias que a narrativa investiga em busca do sentido mais pleno possível: histórico, político, humano, emocional. Nunca chega lá, mas vale a viagem.

O próprio autor, citando Truman Capote, define «Limonov» como um «romance de não-ficção». O livro é mais do que isso, porém. Se os assassinatos que estão no coração de «A sangue frio» — título para o qual o autor americano cunhou a expressão — tivessem ocorrido apenas em sua imaginação, o romance perderia impacto mercadológico, mas literariamente ficaria em pé do mesmo jeito.

«Limonov», não. Caso fosse ficção, seria um romance desconexo, forçado, risível. A não-ficção aqui não se limita ao tema, habita cada fibra do texto, e sem ela seria simplesmente impossível dizer o que o livro diz. Ainda assim é sem dúvida um romance, gênero onívoro que alguns críticos gostam de declarar moribundo, mas que obras notáveis como esta sugerem estar apenas atravessando mais uma etapa de sua permanente crise de crescimento.


«Veja», 22.02.2014

Eduard Limonow

Original:

Sérgio Rodrigues

«Limonov»: quando o romance não cabe na ficção

// «Veja» (br),
22.02.2014