Em «Limonov», o biógrafo também é personagem
Ao folhear Limonov e perceber que se trata da biografia não autorizada de um político russo desconhecido no Brasil, me perguntei que leitor se interessaria por aquele livro. Ao ler os primeiros capítulos, reformulei a pergunta: que leitor em busca de bons livros não se interessaria por aquela biografia?
Deve ter sido um raciocínio assim que levou a editora Alfaguara a apostar na publicação da biografia de uma figura que os brasileiros desconhecem. Trata-se de uma ótima leitura, acima de tudo. O personagem é interessante, é claro, e o autor Emmanuel Carrère não fez uma biografia padrão. Talvez contaminado pelo estilo literário do seu biografado, que se desnuda em seus livros, ele se permitiu aparecer em meio à narrativa como mais um personagem. O resultado da exposição é que o biógrafo também pode ser julgado pelo leitor.
O francês Carrère dá um passo à frente no universo dos biógrafos ao dedicar essas páginas à informações sobre si próprio. Faz isso por uma razão. Carrère admira Limonov, talvez até o inveje um pouco. Deixando visível essa total falta de neutralidade em relação ao biografado, ele é mais honesto com o leitor. Esse «descortinamento» do autor, por assim dizer, também dá mais profundidade à biografia, acrescenta à leitura uma segunda dimensão. Temos informação sobre Limonov e também sobre as reações que a vida de Limonov provoca em quem o observa.
Eduard Limonov é um ucraniano atualmente com 70 anos, filho de um agente subalterno da KGB. Fez de tudo na vida. Foi operário na Ucrânia, malandro de rua, passou um período internado em um manicômio, foi poeta em Moscou, mordomo em Nova York, e tornou-se um escritor ousado e cult em Paris. Estava nesta posição quando Mikhail Gorbachev acabou com a União Soviética e, naquele ponto da história, decidiu voltar para casa. Começou então sua vida de político, fundando o Partido Nacional Bolchevique, mas nunca venceu uma eleição.
Ele é autor de livros de memórias. O primeiro a ser publicado foi O Poeta Russo Prefere os Negros (título da edição francesa). Seguiram-se outros tantos, sempre memorialistas, que conquistaram os leitores europeus e os jovens russos. Porém, mais que a história de vida de um intelectual, o livro de Carrère é a biografia de um soviético, esta identidade nacional que não existe mais. Nascido durante a Segunda Guerra Mundial, Limonov enfrentou os problemas de se viver em uma ditadura comunista e ficou perplexo com o mundo que surgiu após o fim da União Soviética. Seu país virou um bang-bang de máfias, um desfile de gosto duvidoso de novos ricos. A democracia não conquistou os ex-soviéticos e eles vivem entre a nostalgia do mundo previsível em que a Rússia reinava poderosa e a excitação doentia do economia de mercado. É essa nostalgia e essa excitação que a biografia retrata ao falar de Limonov.
O biógrafo Carrère não finge ser neutro, não tenta ser invisível. Ele diz o que pensa do seu objeto de estudo, defende-o em algumas ocasiões, revela-se decepcionado em outras. A leitura toma ares de conversa, de diálogo. Limonov contou episódios de sua vida ao biógrafo, que agora conversa sobre Limonov com o leitor. Longe de ser fofoca, é uma aula de história.
Se Limonov gostou da biografia não se sabe, mas não fez nada para impedir sua publicação.
«Gazeta do Povo», 01.11.2013